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Em 2011 fiz parte da equipe que conduziu um grande estudo sobre escolhas alimentares no Brasil. Era assim: viajar por algumas cidades, visitar casas e escolas, conversar com mães e professores, observar crianças.

E o papo era pra entender o que levava mães a inserirem alguns produtos na alimentação diária de seus filhos.

Fiquei muito impressionada com a diferença de comportamentos de Recife em comparação às outras cidades do estudo.

Para as mães das outras cidades, independente da tal da classe socioeconômica e da idade dos filhos, as opções de produtos industrializados eram bem-vindas porque eram mais convenientes: prontas e saborosas.

Com elas ao alcance, a mulher não precisa lavar tantos talheres, panelas e, principalmente, o liquidificador. E, além disso, algo gostoso e minimamente saudável também tira da mãe a obrigação da criatividade cotidiana de inventar algo que seu filho vá gostar de comer.

Pois bem, chegamos em Recife.

E, pra minha surpresa, o liquidificador lá assume outro lugar na vida da mulher. Nem vilão, nem mocinho. Ele simplesmente faz parte da rotina de qualquer pessoa que tenha algum contato com a cozinha. Não havia drama sobre o liquidificador, ele nem era um assunto assim tão importante para aquelas mulheres que não compreendiam a minha insistência.

_Então você usa o liquidificador todos os dias? E como faz pra limpar?
_Com água e detergente, igual faca, copo, panela…
_Ah, entendi. Mas com qual frequência você lava o liquidificador?
_Toda vez que uso.
_E quantas vezes você usa por dia?
_Pelo menos umas 3, 4. Os meninos gostam muito de mistura.
_Mistura?
_Leite com frutas, com grão, com mel, com chocolate, essas coisas…
_Mistura. Nossa, quanto tempo você passa na cozinha?
_O tempo suficiente pra preparar as coisas e limpar tudo.
_Você diria que é muito tempo?
_Não. É normal.
_Você não acha que é muita tarefa pra uma pessoa sozinha?
_Mas eu nunca estou sozinha. A minha vizinha vem pra cá com os meninos. Então todos vão brincar na casa de minha irmã. Daí voltam pra cá e fazemos um bolo.
_Ah, então você não prepara todas as misturas no seu liquidificador.
_Pode ser no meu liquidificador. Ou no da minha irmã. Ou na vizinha. Os meninos vão brincar, a gente se encontra, uma vai pra sua cozinha ou pra cozinha da outra. Alguém faz a mistura, o bolo, o de comer. Alguém limpa.

Ter outras pessoas por perto e, logo, a divisão orgânica das atividades fazia da rotina doméstica daquelas mulheres mais leve e isenta de pressão. As portas das casas ficavam quase abertas, os vizinhos conversavam, as irmãs levavam as crianças para passear.

E eu fui entendendo, conversa após conversa, que o problema não é limpar o liquidificador, mas a obrigação de assumir mais essa tarefa, além de todas as outras domésticas e de trabalho. E ter alguém com quem conviver e dividir o dia a dia, nesses casos, parece trazer a diferença da leveza cotidiana.

Mas, ainda tinha uma outra questão.

_Mas todo dia você pensa em algo diferente pra colocar na mistura?
_Ah, eu não penso, não. Eu só faço.
_Mas…
_Eu compro a fruta ali na feira e trago pra casa, a que tiver. E minha mãe me ensinou a colocar rapadura no leite…
_A fruta do dia?
_Não compro todo dia, compro quando acaba ou quando passo lá na frente. Ou se os meninos estão com vontade.
_Ah, você passa lá na frente…
_É, aí na hora de fazer eu olho tudo e vejo o que faço. Eu vou inventando. E a gente comenta uma com a outra o que fez. A gente prova. Daí fica gostoso.
_Você vai inventando, entendi.

E desde então, toda vez que penso em Recife, lembro-me dos liquidificadores das mulheres.

E ainda quero pensar um pouco mais sobre isso.
Sobre não ter medo de sujar o liquidificador. Sobre divisão orgânica de tarefas. Sobre não planejar a criatividade. Sobre invenção e espontaneidade.
Sobre Recife e liquidificadores.

(Por Mayra Fonseca. Ilustra o post imagem do belo filme brasileiro “Reflexões de um Liquidificador”, do André Klotzel)