Passei os últimos dias no Araripe, na mais antiga chapada do Brasil, região do Cariri. De um lado, no Crato, nasceu Padre Cícero. Do outro lado, em Exu, Gonzagão. Lampião e seu bando foi abrigado inúmeras vezes por ali.

Eu, que não fui muito influenciada pela Disney, sonhava quando criança que ia lutar contra polícia pra fazer o que acreditasse, que ia ser uma figura atrevida como Maria Bonita, que ia inspirar uma letra de forró das mais apaixonadas… Daí, imaginem, fui para o Cariri certa de que ficaria emocionada ao conhecer a terra desses três ídolos tão importantes pra mim.

Só que nessa primeira imersão local que fiz para O Brasil Com S, entendi que eles são apenas exemplares de um povo determinado, aberto, simples e, talvez por essas qualidades, cativante.

Por isso, neste texto de registro de viagem, vou contar um parágrafo de alguns dos Cariris que me receberam. E tenho a sorte de ilustrar minhas palavras com as belas fotos do Henrique Araújo (cearense que estava viajando pelo Cariri e que gentilmente cedeu essas imagens feitas em visitas que fizemos juntos).

Cheguei no Cariri no dia 02 de novembro, dia de uma das maiores romarias a Padre Cícero em Juazeiro do Norte. De todas as preciosas dicas que recebi de Betão, Janderson e Anna, optei por primeiro entrar em contato com o Junior.

Junior tem 23 anos, é um dos meninos da Fundação Casa Grande (belo projeto que desenvolve crianças cariris por meio da educação cultural e geográfica da região e capacitando-as em diversas linguagens – fotografia, artes cênicas e música são algumas – que podem vir a ser futuras profissões). Ele está terminando sua segunda graduação, trabalha na produção de eventos na região e fora dela e tem uma imensa bagagem sobre projetos culturais. Com sua namorada e com sua mãe, ele trabalha na Agência de Turismo Comunitário, um projeto que recebe visitantes no Cariri inserindo-os na realidade das pessoas: com eles, você fica na casa de um sertanejo, come e conversa com as pessoas como mais um. Junior me disse: “as coisas só andam aqui porque fazemos tudo juntos, colaboração não é inovação no Cariri, é tradição”.  E foi me explicando, nas muitas horas de estradas juntos, porque pra ele não basta que alguém pague um artesão pela visita: “tem que pagar pelo ofício, pelo artesanato; dar dinheiro não incentiva a continuação da produção, entendeu?”. Entendi, Junior.

Amarelinha na Fundação Casa Grande _ Foto Henrique Araújo

Em Potengi, visitamos a casa do Mestre Luiz Antônio. Mestre, reconhecido por ser detentor de um saber e ofício. Ele é um dos responsáveis pela apresentação do Reisado das Caretas: um grupo que brinca o reisado usando máscaras artesanais antigas que remetem a personagens da cultura local. Foi D. Rosinha, sua mulher, quem disse: “vá pegar as máscaras!”. Na sua casa simples, ele guarda aqueles objetos como o tesouro que realmente são e explica que é preciso insistência para ensinar a brincadeira para os mais novos, mas que o povo pede e gosta, por isso a tradição continua. Duas noites antes da visita à casa do Mestre, vi em praça pública no Crato a apresentação de uma Bienal Internacional de Dança e fiquei surpresa ao ver que o espetáculo mais esperado e aplaudido foi o do grupo de reisado local, com destaque para a performance dos idosos e das crianças.

Mestre Luiz Antônio _ Foto Henrique Araújo

Depois, seguimos para o Museu da Invenção, do Mestre Françoli. Visionário querido do Cariri, ele transformou um desejo impossível em arte e inspiração. O sertanejo viu um avião sobrevoar a roça onde trabalhava e decidiu: “quero voar”. E daí cismou de inventar e criar projetos de aviões, ultraleves, balões. Tudo feito com os recursos que tinha ao redor: zinco, latão, pedaços de pano. Foi assim que virou ídolo das crianças, palestrante pelo país. E foi assim que ele fez um ultraleve (que pode estar prestes a decolar!).

Museu da Invenção do Mestre Françoli _ Foto Henrique Araújo

Em uma das saídas de Potengi, está a branquíssima e sempre cheia casa de D. Maria Piauí, a rezadeira do Cariri. Salas com imagens de todos os santos, com o devido destaque para Padim Ciço. Roupa branca impecável, sorriso acolhedor, voz doce e baixa. D. Maria não fez intervalos entre todos que estavam por ela esperando. É o que ela faz desde os 15 anos de idade, seu único ofício é abençoar pessoas. Talvez por ter visto tantas faces de desespero e gratidão, talvez pelo clima de esperança que existe em sua casa… é impossível ignorar a energia boa e sincera daquela senhora. Pra mim, ela disse: “o povo da cidade grande não precisa ter medo da paz”.

Dona Maria Piauí _ Foto Henrique Araújo

Daí fomos a Assaré conhecer o Memorial de Patativa do Assaré, o poeta que escreveu sobre o cotidiano sertanejo e que inspirou trechos de melodias bem conhecidas sobre a região. Lá, as crianças locais nos receberam e insistiam: “Você fala inglês e espanhol? E você sabe o que é Patativa? E quantos anos você estudou na Faculdade? E o que você aprendeu no Cariri?”

Memorial Patativa do Assaré _ Foto Henrique Araújo

Em Santana do Cariri, visitamos as bordadeiras e vi algo impressionante: as redes de bilro. Essas mulheres adaptaram o tear das portuguesas e utilizam birro de macaúba, espinho de mandacaru e palha de cana para a construção de seus bancos de tear. Trabalhando neles diariamente, demoram 6 meses para fazer uma rede.

Tear de Birro _ Foto Henrique Araújo

Voltando para Nova Olinda, já tarde, fomos à casa de Dona Dinha. Com tear manual, ela faz algumas das redes mais bonitas da região. O tear fica no quintal, ao lado de sua casa, e é o mesmo que herdou de sua família e que só manda reformar quando algum pedaço de madeira quebra. No tear, ela pedala no sol durante 1 dia inteiro para fazer uma rede. E conversa com as bordadeiras da região para que façam belas varandas (franjas) e bordados para complementar seu trabalho. Dinha conta que tecer as redes dá muito trabalho, mas que ela fica feliz ao ouvir que suas redes duram uma vida porque ela acha que “fazer coisa pra estragar deve ser muito triste mesmo”.

Já de noite, passamos na porta da loja do Mestre Espedito Seleiro. Do outro lado da rua, a porta da sua casa estava aberta, luz acesa e ele jantava. Quando viu o carro parado disse: “Noite, vamos jantar?”. Tentamos marcar uma visita à loja no outro dia de manhã, mas ele já estava abrindo a porta de seu estabelecimento. Além de me mostrar o modelo de sandália que seu pai criou para Lampião, fez questão de procurar pessoalmente todos os números de botas que serviriam no meu pé, isso porque me ouviu dizendo que uso botas até no verão. Só descansou quando terminou uma bota ali, naquele momento, que coubesse no meu pé. E disse: “volte amanhã, vou achar uma bolsa pra você”. No outro dia, Mestre Espedito, estava me esperando com uma linda bolsa marrom recém costurada (“da cor do teu cabelo!”) e me contou que não sabe onde estão os DVDs com suas entrevistas: “eu só cuido do trabalho mesmo”.

Em Juazeiro do Norte, conheci a Lira Nordestina, gráfica de xilografia que é ícone da literatura de cordel. Trabalhando em volumes sobre o centenário de Gonzagão, Mestre José Lourenço sorria muito quando me mostrava os antigos xilos que ainda conserva e que só vai ceder “se for pra museu sério de gente que goste de gravura”. Fez questão de me apresentar seu irmão, que também trabalha com ele, e um funcionário que cuidava da prensa no instante. Ele ia pegar um vôo pra Brasília, para uma exposição, não estava com a mala pronta, mas insistiu: “vai dar tempo, vamos prosear”.

A última chuva tinha sido em abril. Mas nos dias 03 e 04 de novembro de 2013, choveu no Cariri. Vendo o sorriso das pessoas durante a chuva, lembrei-me do quão importante é celebrar o que é naturalmente belo e essencial em nossos dias.

Obrigada, Cariri.

(Por Mayra Fonseca)