“Sobre o peso de meu amores
Eu vejo a distância
Eu vejo o perigo
Eu vejo os outros gritando
Eu vejo um
Eu vejo o outro
Não sei qual amo mais
Sob o peso dos meus amores.”
(Leonilson)

Quer um cafuné? Deita aqui. Coloque a cabeça neste travesseiro. Eu o bordei com uma história de vida. Vou abrir meu diário e costuraremos vida e arte, juntos – poderia ter dito Leonilson como um convite aos apaixonados para ver sua obra. De trajetória breve, o artista cearense deixou um legado de grande valor a arte brasileira.

LEONILSON E A CATALOGAÇÃO DA VIDA
Por Bitu Cassundé

Elemento marcante nas criações de Leonilson, a palavra revela intimidades e mostra que o corpo é a extensão da obra e a obra é uma extensão do corpo.

Através da sua obra José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993) constrói um percurso existencial marcado por referências pessoais, ao elaborar um verdadeiro arquivo de vida utilizando sua obra como suporte, além de outros mecanismos que também catalogaram o seu cotidiano como: agendas, diários, cadernos, fitas gravadas.

Estão presentes nesses arquivos de referências pessoais, compostos por material recolhido no cotidiano, programação diária, tickets de viagem e hotel, tickets de cinema, matérias de jornais e revistas com informações pessoais, de amigos ou da obra, restaurantes freqüentados, programação das exposições, fotos, contas, endereços, telefones, cartões, relatos de viagens e também uma refinada escrita poética, esboço de trabalhos e demais particularidades. Atualmente esse material composto por 11 diários, 06 agendas de endereços e telefones, 26 cadernos de anotações e desenhos passa por uma nova catalogação, acondicionamento e revisão através do Projeto que cuida do legado do artista.

Leonilson através desses mecanismos citados deixa vestígios, marcas do seu trajeto, tanto artístico como pessoal. As diversas agendas, diários, coleções, biblioteca e obras que se encontram hoje no Projeto Leonilson, possibilitam uma investigação mais profunda acerca das características do seu trabalho e referendam mais esse traço na poética do artista: uma taxonomia voltada para o Eu.
É desse arquivamento do “Eu” na obra, que uma intenção autobiográfica se legitima carregada de verdade e intimismo, transformando sua produção em pequenos relicários, ou páginas de um diário. De um campo semântico taxonômico verificamos alguns pontos que se explicitam como: a diversidade de listas, nomes, categorias, recorrência simbólica, e principalmente a presença do caráter colecionista que se evidencia nas coleções de brinquedos e pelo conjunto de signos recorrentes utilizados durante todo percurso da obra (ampulheta, símbolo do infinito, números, navio, escada, ponte, relógio, avião, farol, instrumentos musicais, átomo, vulcão, montanha, cadeira, bússola, torre, radar e etc).

Num documentário produzido na década de 80 por Ana Maria Magalhães intitulado “spray jet” Leonilson faz a seguinte declaração “a vida e a arte fazem parte do salto no abismo que eu resolvi dar”, já em entrevista para TV Cultura afirma “o meu trabalho é o meu ponto no mundo, sabe, é pra onde eu corro, assim, o meu trabalho é a minha observação sobre o mundo”.

É das experiências pessoais que o artista, através da sua poética, eleva questões particulares e as desdobra em temas universais de fácil identificação e encontro com o outro, Leonilson captura o espectador justamente tornando-o cúmplice de suas questões. Essa dinâmica sedutora entre artista e espectador tem uma aliada forte, a utilização da palavra na construção estética da obra. Seu primeiro exercício plástico uma assemblage de 1972 já continha o elemento gráfico e será constante a presença da palavra em diálogo com imagem, ou como presença enunciativa nos títulos de seus trabalhos, que possuem um lirismo bastante acentuado. A palavra se localiza em sua obra, livre, sem amarras desobedecendo a regras de sintaxe ou gênero, porém como meio de diálogo entre as imagens, ao incorporar-se a elas numa fusão visual. O recurso gráfico por ele utilizado evidencia um caráter intermidiático, pois em suas construções “poético-visuais” há um diálogo entre artes plásticas e literatura, que se revela principalmente através dos títulos que condensam uma grande força narrativa (“voilà mon coeur – ouro de artista é amar bastante”, “O pescador de palavras”, “O inconformado”, “São tantas as verdades”, “Rios de palavras”, “Todos os rios levam a sua boca”, “Leo não consegue mudar o mundo”, “Para meu vizinho de sonhos”, “Longo caminho de um rapaz apaixonado”, “O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto pra servi-lo”, “Bom rapaz em embalagem ruim” e etc).

Foi em 1991 que Leonilson descobriu ser portador do vírus da AIDS, fato que desencadeou forte influência na sua poética, projetando para a obra questões ainda mais íntimas e autobiográficas. É no período de 1991 a 1993, última fase de produção, que sua obra incorpora características pontuais e de grande lirismo. Os recursos utilizados são mínimos e a simplicidade na representação moldura um silêncio, elaborado entre ironias, que discutem a sua via-crúcis.

Por questões alérgicas, a pintura é pouco praticada, os desenhos e bordados são os meios mais executados. Nessa fase há uma confluência entre corpo e obra, que se refere ao corpo ausente ou fragmentado, discutido por informações mínimas como peso, altura, idade, refletindo um procedimento metafórico para a construção do auto-retrato que se fragmenta em metonímias e relicários. Leonilson imprime sua experiência, sua dor, divide com o seu espectador – agora um voyeur – um percurso difícil e corajoso o de desnudar-se de forma mais intensa. Sua produção reflete um posicionamento diante da morte, os trabalhos se tornam pequenos relicários que relatam o seu calvário. Leonilson está diante da morte e a arte se transforma numa narrativa que conforta sua imagem fragmentada com a doença, o vazio se legitima na iconografia, as imagens ficam econômicas, mínimas e são emolduradas por espaçamentos, por silêncios.

A experiência do olhar que se estabelece nessa situação, a questão do ver e do ser visto na projeção da morte, a angústia de ser observado pela morte e a partir daí encontrar seu processo poético constitui uma negação de entrega, de resistência diante de uma certeza que se edifica na imagem de um túmulo, mas que encontra suspiro no poder da criação. A imagem da morte é projetada para a obra, e a obra reflete a projeção de um corpo fragmentado, traduzido pelo gestual do bordado, pelos tecidos leves, sóbrios, por panos que até então recobriam aquele corpo e são transformados em suportes para novas experimentações. O corpo é extensão da obra e a obra é uma extensão do corpo, fragmentos de uma linguagem que se incorporam entre reflexos de vários espelhos.

Leonilson teve uma trajetória breve, porém deixou um valoroso legado para a arte brasileira, que pôde experimentar com mais profundidade através da sua produção um percurso existencial de um artista que ousou dialogar com uma verdade, uma verdade que não era somente sua, uma verdade capaz de capturar e encontrar uma interseção naquele que o observa, do apaixonado que encontra em sua obra um espelho e que nele reflete a sua verdade. Leonilson revela que a verdade não se encontra no “Eu”, mas sim no “Nós”.

Texto publicado no Caderno 3 do Jornal “Diário do Nordeste”, dia 08/02/2009.
Fonte imagens: http://espacohumus.com/leonilson/

Curadoria e pesquisa: Ana Luiza Gomes