O jornalista Paulo Silva Junior escreveu o livro “O Acre existe” como resultado da sua viagem ao Acre junto aos amigos Bruno Graziano, Milton Leal e Raoni Gruberpara para fazer o documentário de mesmo nome. Convidamos o autor para nos responder: Por que filmar um documentário sobre o Acre?

O que esses meus três amigos diziam quando íamos dormir às cinco e meia da manhã pra levantar às quinze pras oito lá em Rio Branco é que cinema é cedo e longe. (…) Sobre o Acre, eu ressalto pra mim mesmo que fugiu completamente do controle e se tornou uma coisa gigantesca na minha vida, que me incentivou a largar o emprego, a vislumbrar novas ideias no cinema, a escrever meu primeiro livro e que me mostrou que tem um monte de gente por aí fazendo tanta coisa legal que o mínimo que eu tenho de ser é um chato insatisfeito com a rotina mesmo, se coçando pra descobrir um novo Acre por ano e provando pra mim mesmo que as coisas podem acontecer, quatro caras, um carro emprestado, duas câmeras, um filme, um livro, uma pancada nas ideias e nenhuma dúvida do que queremos ser quando crescer. Porque, pelo jeito, a vida é cedo e longe.

Começo pelo final: essas acima são as últimas linhas do livro O Acre Existe, um relato de 304 páginas que trata de uma viagem de quatro amigos que pegaram um carro no centro de São Paulo e foram pro lugar do país que menos conheciam pra fazer um documentário de nenhum orçamento nem roteiro definido e viram a aventura apoiada na imagem do moleque de vinte e poucos anos cansado da cidade grande se tornar quase que um relato-homenagem à descoberta de um lugar único.

A grande questão aqui, portanto, é: por que viver sem nunca ter feito um documentário sobre o Acre?

Primeiro, vale a explicação de que a escolha pelo Acre surgiu por acaso, vai, não que surgiu totalmente pelo acaso, digamos que ele era o favorito diante dos pré-requisitos ébrios definidos alguns segundos antes. Os amigos Milton Leal, jornalista, e Bruno Graziano, cineasta, decidiram depois de seis cervejas que a próxima epopeia seria cair na estrada pra fazer um filme e conhecer algum lugar que julgassem bastante desconhecido, o bastante pra alguém já dizer Acre, outro alguém já dizer O Acre Existe.

O que se tinha até então era só o mote de usar o gancho da piada que todo mundo já ouviu algum dia na vida, afinal, o Acre nem existe, não é mesmo? – e eu um dia tentei lembrar como era ouvir isso antes de tudo isso, sem sucesso, enfim.

A motivação inicial então remete aquilo que disse antes: você tem 23 anos e quer abraçar o mundo, plantar a árvore com uma mão, escrever o livro com a outra e fazer o filho (sabemos como) ao mesmo tempo, pra não dizer dos que tentam ter um filho com a árvore, escrever um livro sobre o filho que nem tem, ou plantar um livro, sei lá, aquela bagunça daquele período da vida em que mais do que nunca você sente que seguir a engrenagem do mundo o torna um completo idiota.

Juntemos a isso questões pessoais: eu era um repórter de contrato temporário numa grande empresa de jornalismo onde, terminados meus seis meses de trabalho, precisava cumprir uma quarentena de três meses pra ser contratado de novo – como temporário, claro. Ou seja, tinha todos os motivos profissionais possíveis pra instaurar um desapego total; os três – Bruno, Milton e Raoni Gruber, também cineasta – também tinham essa abertura, seja porque largaram empregos ou porque queriam fugir de futuros.

E o último fator é como colocar dois quadros na parede: num deles, São Paulo, o porteiro do prédio com cara de bunda, um puta trânsito de ônibus pra descer até o boteco, a cerveja chegando à nota de dez, a calça jeans suada num verão desértico, os alugueis aumentando, os amigos vivendo em apartamentos cada vez menores e o mundo te perguntando a cada esquina se você já tem um trabalho novo; no outro, uma estrada de mais de três mil quilômetros respirando Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Acre, quatro amigos viajando no ritmo que bem entendem, ouvindo a música que melhor couber, conhecendo um lugar que nunca foram chamado Amazônia – simplesmente a mais rica floresta que essa nossa espécie já conheceu – , sem hora pra chegar nem dia pra voltar e, claro, fazendo um filme, um livro, de calção de futebol, cerveja a no máximo cinco e porteiros de prédio com menos cara de bunda, ou melhor, praticamente ninguém mora em prédio mesmo.

Passado este contexto pré-viagem, fomos surpreendidos com o tamanho do Acre. A história da guerra que levou aquele lugar a deixar de ser terra boliviana, passar a território brasileiro e depois estado, de fato. Todo o contexto dos soldados da borracha, os desbravadores nordestinos que se tornaram acreanos na exploração do látex ainda durante a segunda guerra. A luta pela preservação da floresta representada pelas figuras de Wilson Pinheiro, Chico Mendes e a discussão ainda tão contemporânea sobre a relação entre o homem e o meio ambiente. A imigração haitiana, veja só, este povo sofrido que já não bastasse viver na situação mais complicada das Américas viu o país ser devastado por um terremoto e vem buscar uma nova vida no Brasil, entrando por onde?, o Acre. A cultura da ayahuasca, o chá sagrado dos índios, que no Acre virou religião, santo daime, vegetal. E toda uma cultura local espontânea, livre, resultado do que chamei no livro de confusão maravilhosa chamado acreano, uma mistura de um índio, um seringueiro, um nordestino, um artista, um cidadão da floresta mais impressionante deste planeta, um novo homem da cidade calmo, coerente, amoroso.

Ou seja: não bastasse a ideia vaga e juvenil do largar tudo, colocar a mochila nas costas e pegar a estrada, escolhemos um lugar do caralho. Diferente do Amazonas, de Rondônia, do Peru e da Bolívia. Um pedacinho de terra onde moram nem 800 mil pessoas e tem particularidades marcantes, além dum sentimento – que desconhecíamos – que podemos chamar de acreanismo, um forte orgulho do lugar, um bairrismo histórico e latente.

Na prática, a coisa funcionou bem: entrevistas foram acontecendo, apoios foram surgindo, as brigas e desgastes dentro da equipe foram poucos, nada de mais grave aconteceu e voltamos com o dever cumprido. E apesar do retorno financeiro difícil e incerto e da dedicação absurda, temos um filme de 115 minutos, um livro de 304 páginas, ambos independentes e contando com ajuda de amigos, uso do tempo livre e um fator subjetivo mágico que fez toda a diferença – o fato de ter virado outra pessoa a partir da força com que essa viagem bagunçou as ideias e invadiu a vida. É o que importa. Valeu demais a pena a ponto de ter algo legal pra usar aquele velho clichê: sim, se pudesse voltar no tempo, faria tudo igual.

Lembrei de citar Eduardo Coutinho como homenagem póstuma ao cara que talvez seja a grande referência pra essa coisa toda. Vou dizer então que o maior documentarista da história do país falava que ouvir as pessoas é o que o mantinha vivo, sempre valorizando a nobreza, a beleza que tem a ação de escutar histórias de gente comum, com a certeza de que o passado contado é melhor que o passado vivido. Não tenho a pretensão de dizer que é isso o que me faz acordar todas as manhãs, menos, bem menos, muito menos que isso, claro.

Mas vá saber o que tem no Amapá.

Fonte: http://espacohumus.com/pachamama/

Pesquisa e entrevista: Ana Luiza Gomes