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Passei os últimos dias lendo e relendo a Estética do Frio, do Vitor Ramil: “Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo, estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar “acredite se quiser”, está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como metáfora amplamente definidora do gaúcho”.

Repetindo esses trechos, lembrei-me de dois dos homens que mais me ensinaram nesta vida: Jesus (Contreras) e, claro, meu pai.

Contreras foi meu orientador de mestrado em Barcelona, um filósofo e antropólogo extremamente rigoroso e caridoso com os alunos, alguém que teve a paciência necessária para me apresentar para a antropologia e, especialmente, para o materialismo cultural: aquela linha que insiste em considerar todos os aspectos de um contexto (inclusive os ecológicos, ambientais e climáticos) para explicar a repetição de um padrão de comportamento.

Meu pai é desses mestres do cotidiano, tipo de pessoa que comenta sobre a posição do sol e o fluxo do rio. Nasceu em roça no início do sertão, espantou passarinho do escasso milharal para ter o que comer… Com bonita curiosidade, faz perguntas que não sei responder sobre os lugares onde moro ou visito. Foi assim que nos últimos anos ele cismou de constatar que eu gosto de lugar “que não é arejado”. Lugar fechado, com parede muito grande, com pouca janela… fui entendendo o que ele quis dizer. E assim começou a rotina de eu tentar levá-lo a bares, cafés, livrarias e restaurantes que fossem mais abertos. Na Europa, em São Paulo… ele insistia: não, aqui não é arejado. Na última visita que ele me fez, há poucas semanas, fazia um ventinho fresco em São Paulo (uns 18 graus) e ele pediu pra sentar dentro de um restaurante. Daí eu entendi tudo: pai, é que aqui e na Europa, tem um pouco de frio… os lugares não podem ser tão arejados como lá em casa! “Ah, minha filha, agora sim eu entendi. É culpa do frio”- ele disse.

Alguns amigos gaúchos insistiam pra gente incluir um tema sobre o Sul nas pesquisas do O Brasil Com S. Também já estávamos ansiosas. E foi assim que chegamos lá na ponta, então vamos ver os Pampas! Como criança, fui vendo diferenças e coincidências com cenários que conheço. O couro também é tão presente, ainda que seja para proteger do frio e da água e não das longas caminhadas pela poeira e pedra do Sertão. As casas são repletas de objetos que contam a história dos moradores e da família, ainda que mais fechadas e quentinhas. O artesanato também é a arte cotidiana. As pessoas precisaram inventar formas de transportar comidas, o charque (parente da carne de sol) e o chimarrão.

Um dia, um desses amigos me mostrou do celular umas fotos de um cotidiano difícil no interior do Sul. Eu disse: “certo, mas você não sabe o que é a seca”. E ele me respondeu: “é… você tem razão”. Releio Vitor Ramil e penso que meu amigo deveria ter dito: “e você não sabe o que é o frio!”.

Pesquisando sobre os Pampas, assumo e abraço nossas diferenças: entendo que frio dói, e ensina, tanto quanto a seca.

(Por Mayra Fonseca. Foto de Eneida Serrano)