1610021_243775362460377_740301256_n

A história do filme passa uma condição da natureza geográfica e social da arte, a navegação do sanfoneiro do norte para dentro do Rio de Janeiro, que é o portal da cultura, o coliseu dos mazombos. Essa imigração do nordestino ao Rio não é só para melhorar de vida, ela é física, trabalham de servente de pedreiro ou compram uma loja disso, daquilo, porque lá não acontece, é muito pouco, os próprios sanfoneiros e repentistas não são prestigiados como devem no Norte, são poucas as opções no nordeste, lá pagam pouco e as vezes nada, houve uma verdadeira escravidão social no passado, não se respeitavam as leis trabalhistas embora sendo uma das regiões mais ricas simbolicamente do mundo , então eles trazem a família para cá. Trazer a família fisicamente é uma coisa e trazer a arte e seu mundo simbólico é outra coisa, são duas missões, uma na terra e outra no céu, no domínio das idéias espirituais e simbólicas da imaginação humana. Somadas. Quando se produz o mundo dos sons.

O que me impressionou no Dominguinhos é essa força dele ser descendente de índios, a avó e o avô dele eram índios, não sou eu que estou dizendo, ele está dizendo, é a voz dele escrevendo sua própria história. Não é um filme colonizado, televisão, celebrismo e novidades, mas é o seu quintal das gentes, vamos para Palmeira dos Índios, sua ascendência, vamos para sua infância, os pássaros que ele escutava, bola de gude, peão, carrinho de rolimã, entrar na mata e cutucar cobra com uma vareta de bambú, escutar os repentistas na feira, as atividades simbólicas do mundo “pobre” dos sertões. Ele conta que demorou 11 dias para chegar, na carroceria de um caminhão pau de arara, essa é a guerra dele, trazer o mundo simbólico da formação do Brasil para a sala de visitas do Rio de Janeiro, morando no subúrbio é claro porque não dá para imaginar um sanfoneiro morando na zona sul, não aceitam nem a música como é que vão aceitar a pessoa? O que se aceita na zona sul é bossa-nova, falar inglês, francês, alemão… Os próprios nordestinos desprezam os sanfoneiros, é uma sociedade do mandonismo, um retrato do mandonismo nacional, parvo e destituído de estima própria, como todos os mandonismos no mundo.

Quando o Dominguinhos vem para cá você vê o choque, tocar polca, jazz, bolero, valsa, tango, música de elevador, musicas de dentista, musica nenhuma, músicas sem nenhum compromisso com a terra dele, ou com a arte, ou com quase nada. Então imagina o sanfoneiro aprender música polonesa, alemã, para agradar os “gringos do sul “, e quem são os gringos? São os próprios brasileiros que desconhecem quase completamente a música nordestina e do norte. Até hoje é uma curiosidade, uma pimenta que você bota no prato do sul, mas desconhece o tema, o mote, a vida, a culinária, os timbres, a noite, quase tudo, a única coisa que todos conhecem em massa no sul é talvez Asa Branca, e antes Mulher Rendeira, cantada na bela voz de Vanja Orico, um clássico. Os paulistas se adiantaram em filmar o nordeste, “Mulher Rendeira “, tema do filme “ O Cangaceiro “ de Lima Barreto, este é o único filme brasileiro citado por Carl Gustav Jung em seu célebre livro “ O Homem e seus Simbolos “. A música mesmo do nordeste, as escalas, os timbres, os modos, as formas, os repentistas gêniais, as rabecas, você tem que ir para Pernambuco, Paraíba, Ceará, porque aqui ninguém conhece, ou pouco conhecem. Por que quer ouvir música de cassino? O cassino ensina o homem do norte a falar pouco, moderar as suas palavras, fazer o jejum extendido, dar forma ao seu mundo simbólico e sonoro, conter a expressão, para desenha-la, esculpir e elevar, acima de seu natural, não existe forma na Origem e talvez seja isso que o sertanejo busca no sul, em sua intuição primal, a circuncisão na civilização, o selo da forma. O Mangue ensina ao Santo e ao Metafisico .

A entrada dele no Rio simboliza todas as entradas, essa é a grande aventura das linguagens. Todos os sanfoneiros que estão nesse momento no Rio passam a mesma coisa que o Dominguinhos passou, esse colonialismo, elitismo cultural ao sertão do Brasil. Essas são as pessoas que vem do fundo da formação do Brasil, do quintal do quintal do quintal do quintal e chegam ao Rio de Janeiro e vencem, e vencem como? Levando muita pancada, e resistindo , você vê pela fisionomia dele, no rosto, você vê a luta, os casamentos, a tentativa de se juntar com a mpb e ele volta para a música nordestina, volta para a mpb e volta para a nordestina, ele pertence ao mundo nordestino, você precisa ter essa verdade espiritual do artista, o seu território. Não para prender mas para soltar .

O filme traz o fundo para a frente, quem é o cabra que traz o fundo para a frente? É essa a pergunta: São muitos, um deles é o José Domingos de Moraes, cabra de Garanhuns, Pernambuco, um vencedor. Mas não no sentido comum, mas como artista .

Joaquim Castro, um dos diretores do filme Dominguinhos, e Guilherme Vaz, artista e compositor.

Pesquisa e entrevista: Ana Luiza Gomes