Um dia qualquer em Garanhuns de 1950. Como de costume, o menino vai caçar passarinho. No meio do mato da Suíça do nordeste ele passa horas. Vive vendo bichos e comendo fruta do pé. Em dia de feira não brinca no mato. Junto com os irmãos, ele vai tocar em troca de trocados para completar a cesta da mãe. Na casinha de pau-a-pique, o pai faz de tudo. Planta, caça, faz móveis, faz filhos. O pai tem também o dom da música. Afina sanfonas e toca em dia de festa.

De ouvir, o menino aprendeu a tocar. Tanto que quando ficou em frente ao Rei do Baião, impressionou o hôme. E foi assim que tudo começou pro Nenê do Acordeão. Meio por acaso. Meio sem querer.

Não muito longe de lá, um outro menino levava uma vida parecida. Só que na Paraíba. Só que meio cego, com a visão turva e cabelo branco.

Ambos viraram músicos. Ambos viraram a música do avesso.

Hoje estes dois meninos se encontram no estúdio. Já não são tão meninos, mas brincam de música como se fossem. Sem amarras. Sem convenções. Viva Hermeto! Viva Dominguinhos!



1962. Quando a noite cai em Copa, os neons se acendem. No lusco fusco, o moço vem carregando sua sanfona pela calçada ondulada na beira da praia. A maresia cola no corpo. As moças de família usam seus vestidos leves e ficam curiosas com o instrumento do músico.

Seu universo é o dancing. É pra lá que ele vai quando escurece e só sai quando amanhece. Lá, é onde as mulheres dançam por dinheiro e os músicos tocam por amor. Tocam por dinheiro também. Mas se não fosse o amor, não haveria mágica.

E hoje, como em todas as outras noites, há mágica! Donato, Das Neves, Luís Alves e Nenê do Acordeão. Jazz, samba, rumba, chachachá. Quer o que? É só pedir. É só dançar. A pista ferve, as moças rodopiam, os homens se apaixonam, os copos se enchem de alegria. Tem dança que acaba em casamento e tem dança que acaba quando a música termina.
Muita música no ar e a brisa do mar. Todo dia é treino e todo treino é jogo. Agora, você pode ver como funciona um jogo sem treino. Passaram-se uns cinquenta anos. Há mais hitórias pra contar e música para tocar. Piano play!

Tinha algo diferente no ar no inicio dos 70. Gil e Caetano voltavam de Londres. Ficaram de cara com o show de Luís Gonzaga, o Rei do baião no auge da majestade. Espetáculo estrito senso. Eloquência musical, folclórica, radical, nordestina, inventada, diria Caetano a Gil. Gil gostou do sanfoneiro. Aquele que acompanha e carrega ao mesmo tempo. Voltaram todos os dias para ver o mesmo show diferente cada vez.

Eram dias livres no regime opressor. Acompanhados por Gal e Bethânia, os baianos estavam fazendo o novo. Acharam que fazia sentido trazer a sanfona pro jogo. Sacaram da banda o teclado e meteram no lugar o acordeão de Dominguinhos.
Gal gostava de chamar o novo amigo de Dimanche. Gal gostava de cantar, dançar, seduzir, deixar-se levar. Dimanche aussi. Fizeram muita coisa juntos. Fizeram história.

Com Gil, Dominguinhos “refez” o Brasil dentro de uma Veraneio. Entre os clássicos, nasceu “Lamento Sertanejo”. Por ser de lá, na certa por isso mesmo é que ver estes caras se reencontrando, assim sem compromisso, dá esse misto de alegria e nó no estômago. Vamos ver. E ouvir. Sem compromisso.

Escrito por Beto, produtor do documentário Dominguinhos Mais Dominguinhos Mais.

Curadoria e pesquisa: Ana Luiza Gomes.