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_ Barro. _ ela disse enquanto lia, alternando gargalhadas e lágrimas, os livros da Biblioteca Itinerante do O Brasil Com S aqui no sofá ao meu lado.

_ É o quê, mãe? _ olhei, reconhecendo o tom profético e atrevido de minha mãe quando me incentiva.

_ Vai ser lindo quando vocês pesquisarem barro. Fale para Ana. _ e me lembrou de uma lenda que estava naquela página do livro que tinha acabado de ler, insistiu que meu avô sabia contar melhor.

Eu era bem menina, daquelas que usam saia azul marinho de pregas em colégio de freiras do Sertão, e Dona Laura passava pra me buscar a pé cheia de sacolas: pincéis, tintas, pedaços de pano, argila. Na minha mochila, o caderno pautado tinha mais rés do que tudo que eu tinha escrito nos meses de aulas de Ciências. Necessariamente, tomávamos sorvete no caminho. E eu gostava ainda mais das ruas em Agosto, cheias de fitas e catopês.

Era assim que começavam as minhas tardes: chegávamos no Conservatório Estadual, eu subia as escadas para começar a rotina de aulas de música, minha mãe ia para as oficinas de artes manuais.

Nossas noites começavam com a mesa da varanda bem suja e bagunçada: mãe misturava água, tinta e barro. E fazia quadros, bonecos, enfeites, potes. Enquanto eu, sem emitir nenhum som, tentava memorizar a seqüência de notas que tinha escutado mais cedo ao piano.

Na nossa casa, Vale do Jequitinhonha, garimpeiro e índia são palavras tão próximas quanto – literalmente – familiares. Deve ser por isso que eu achava normal ver a minha mãe com as mãos sujas de argila e depois com as mãos tecendo uma tapeçaria, depois com as mãos consertando minha saia, depois com as mãos consertando o sal da carne serenada, depois com as mãos acariciando minhas irmãs, depois com as mãos misturando raiz em água para a dor passar. Com as mãos cruzadas, em prece, diante de um desses santos que cuidam das mães.

Só hoje, nesta volta que a vida deu para dentro de mim, percebo como essas mãos – tão brasileiras – moldaram o afeto e a trama da minha história. Da história de toda uma geração.

Tantas mãos inquietas e produtivas neste país que se fizeram presentes tanto para manter os ofícios aprendidos em família, como para garantir o sustento – e a ocupação do tempo – de uma casa.

Ainda bem, minha mãe, que sem nem perceber, deixei tuas mãos me levar.

(Por Mayra Fonseca. Imagem da obra da Mestra Izabel Mendes da Cunha)