(Quem nos responde é o Felipe Januzzi, um dos criadores do projeto Mapa da Cachaça, que faz esse tema Cachaça em parceria com o Brasil Com S. A foto e o mapa que ilustram o post foram produzidos pelo projeto Mapa da Cachaça.)

Ainda na faculdade, tive uma vontade imensa de conhecer o Brasil e enfrentar a minha ignorância sobre o nosso país. A idéia era a mais romântica possível – pegar o carro e cair na estrada.

A aventura ganhou força quando li “Guerra & Vinho”, um livro sobre a Segunda Guerra Mundial contada pela perspectiva dos pequenos produtores de vinho francês. Ao invés de ser um livro chato sobre esse período histórico, o livro flui fácil quando os autores descrevem as artimanhas dos franceses para protegerem suas vinícolas das invasões alemães. Além de aprender sobre história mundial, conheci também um pouco mais sobre o povo francês e sua cultura, quando tratam o vinho como patrimônio nacional.

Passei então a pensar se não podia conhecer o Brasil pela perspectiva do produtor de cachaça. Afinal, se o francês tem o vinho como patrimônio, a cachaça é a bebida tipicamente brasileira. Entre doses e outras num boteco de São Carlos, onde me formei, a ideia fazia mais sentido quando olhava para a prateleira repleta de garrafas de pinga produzidas nas mais diversas regiões do país.

Tomei uma dose de coragem e botei em prática meu plano: fui atrás de conhecer os alambiques de cachaça e documentar as minhas descobertas no site: mapadacachaca.com.br. Hoje, com um pouco mais de 2 anos de Mapa da Cachaça, descobri muita coisa sobre a nossa história e cultura, mas principalmente sobre o povo brasileiro.

Neste texto para o Brasil com S, compartilho um pouco da minha experiência durante essas viagens por alambiques e algumas descobertas sobre cachaça que talvez vocês ainda não conheçam.

Cachaça por lei é brasileira e só pode ser feita da cana-de-açúcar

Apesar da cana-de-açúcar ser uma planta asiática e as técnicas de destilação serem árabes, a cachaça é um produto exclusivamente brasileiro. Você não pode rotular um destilado como cachaça na Argentina, por exemplo. Além disso, cachaça só pode ser da cana. Um destilado de caju, por exemplo, é uma aguardente de caju e não uma cachaça de caju. Tudo isso está no Decreto 6871/2009, art. 53, que define a cachaça como:

“a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de 38 a 48 por cento em volume, a vinte graus Celsius (°C), obtida pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar (…)”

Se ficar com preguiça de ler a legislação, no Mapa da Cachaça fizemos um vídeo com o Sommelier Leandro Batista, do Restaurante e Cachaçaria Mocotó, explicando em detalhes o que é cachaça.

A cachaça foi destilada por volta de 1532 em São Vicente

A cana-de-açúcar chegou primeiro em Pernambuco, mas foi nos engenhos de São Paulo que ela foi fermentada, destilada e transformada em aguardente. De acordo com Câmera Cascudo no livro “Prelúdio da Cachaça”, a aguardente de cana foi primeiro produzida por volta de 1532. Ou seja, a cachaça acompanhou praticamente toda a história do Brasil!

Apesar de São Paulo ter destilado pela primeira vez a cana-de-açúcar, hoje os seus antigos engenhos estão desativados – inclusive são protegidos pela USP como monumentos históricos. O alambique mais velho em atividade está em Coronel Xavier Chaves, em Minas Gerais, e foi instalado em 1755 pelo irmão mais velho de Tiradentes.

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A cachaça é a irmã mais velha do rum

Já eram produzidos aguardentes de cana-de-açúcar em outros lugares, mas foi em Pernambuco, onde os holandeses se instalaram no Brasil nos primeiros anos de 1600, que a bebida foi produzida em grande escala. Quando os portugueses dominaram essa região do Brasil, os holandeses foram expulsos e partiram para as Ilhas Caribenhas e com eles levaram também a cana e as técnicas de destilação. E por lá, a bebida passou a ser chamada de rum e ganhou fama mundial,  já que os holandeses eram bons pra caramba no comércio exterior com sua Companhia das Índias Ocidentais  – além disso, os piratas ajudaram a dar fama ao rum caribenho.

A cachaça pode ser envelhecida em mais de 20 tipos de madeiras nacionais

Se o rum tem a fama mundial, a cachaça tem a criatividade do brasileiro. Ao contrário do uísque, tequila e rum que são envelhecidos apenas no carvalho, a cachaça pode ser envelhecida em diversos tipos de madeiras nacionais: bálsamo, umburana, jequitibá, ipê, tapinhoã e várias outras são utilizadas para o envelhecimento ou armazenamento da bebida – são mais de 20! E cada madeira concede uma cor, um aroma e um sabor característico. Imaginem o potencial disso para a gastronomia. Alguns chefs, como o Rodrigo Oliveira do Mocotó, por exemplo, usa cachaça envelhecida em bálsamo na sua receita de mousse de chocolate.

Buscando entender as propriedades trazidas pelas diferentes madeiras, realizamos no Mapa da Cachaça, junto com especialistas, um estudo sensorial sobre a influência da madeira na cachaça. Eu explico mais no vídeo abaixo.

São milhares de sinônimos para cachaça.

A cachaça produzida no Brasil sofria com os embargos portugueses que não queriam concorrentes para a sua bagaceira. No Brasil Colonial era proibido produzir cachaça  – ou quando era liberada a produção a tributação era abusiva. Por isso, para enganar a fiscalização, o criativo povo brasileiro passou a adotar outros nomes para pedir uma marvada. Com isso, em diversos canto do Brasil temos sinônimos diferentes para se referir ao destilado nacional…e são milhares deles. Fizemos esse infográfico com alguns, mas com certeza você deve conhecer outros. Diga aí!

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Dinheiro de pinga já pagou professor e isso era bom!

Lembra dos impostos sobre a produção de cachaça no Brasil Colonial que comentei no item anterior? Então, em 1772 a Metropóle criou o Subsídio Literário – um imposto criado para pagar o salários de professores no Brasil. O professor ganharia naquela época um salário melhor do que hoje em dia: 62 mil réis, o equivalente a R$ 2 mil.

São milhares de marcas espalhadas por todo o Brasil!

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Cachaças estão presentes em praticamente todos os estados brasileiros. Em cada região temos um perfil de produção, uma cultura local e uma história diferente para contar. Você sabia que tem cachaça no Rio Grande do Sul? Pois é, tem descendentes de alemães produzindo cachaça há mais de 6 gerações na Serra Gaúcha – como a família Weber. Abaixo, deixo um vídeo realizado pelo Mapa da Cachaça quando visitamos o alambique da cachaça Weber Haus em Ivoti.

A proposta de escrever aqui no Brasil com S, um projeto que busca apresentar as diferentes manifestações do povo brasileiro, é justamente propor um intercâmbio de ideias. Eu ainda preciso pegar muita estrada, conversar com muita gente, ler muitos livros e beber muitas cachaças boas para entender a complexidade do tema e produzir conteúdo que mostre toda a  sua relevância como patrimônio cultural. A cachaça é um tema multidisciplinar que merece o envolvimento de historiadores, designers, chefs de cozinha, mixologistas, antropólogos, biólogos, químicos, turismólogos… e porque não, cachacólogos. Aos poucos, com muita ajuda, vamos colocando tudo no Mapa da Cachaça. Fica aqui o convite para quem quiser nos ajudar a contar essa história e compartilhar umas doses de uma boa pinguinha.