“Andarilho” é um filme mais racional, mais arquitetado, concreto. Joga com a ambivalência de sentidos. De um lado a fluidez da fotografia que dilui a paisagem dura das estradas, da luzes dos carros, do calor do sol, de outro a rigidez e a precisão do plano, estudado, desenhado, plástico, entrecortado para a existência daqueles personagens. E estas dicotomias de sentido, sugeridas pelo filme, continuam nos momentos nos quais eles, os personagens, se revelam. Um deles (Gaúcho) é insano, desconstruído, loiro, carrega suas bagagem nas costas, fala com ares de inteligência e certa arrogância que se calam em hábitos inventados. O outro, Paulão, é metódico, negro, carrega seus pertences num carro que empurra pelas estradas, organizado, prepara sua refeição, acredita em Deus, não tem ares de louco, é calmo. O terceiro, Nercino, é maníaco, doente, repete palavrões a esmo, não parece estar conectado com nada que não seja seu próprio isolamento. Em comum, os três habitam as estradas do norte de Minas, andam por elas.

Estes são os personagens de “Andarilho” e observá-los não representa nenhum exercício antropológico, mas muito mais filosófico. Somos levados a vê-los, por minutos a fio, quase não há falas (só os sons naturais captados de maneira metafórica pelo genial “Grivo”. Metafórico porque nos leva em elipses a todo tempo para algo do extra-campo, além da visão. Ex: se vemos ao longe a barbearia de estrada, ouvimos o som dos pés arrastados do barbeiro que corta o cabelo). Ouvimos com potência o barulho dos caminhões gigantes que passam arrebentando o asfalto (quem um dia disse que odiava o barulho de carros passando em velocidade na estrada?) e o som hipersensível de tudo que está neste entorno. Sim, porque nosso ponto de vista e de audição é de quem está ao lado do asfalto, às vezes fora dele, por pouco.

Cao Guimarães consegue transformar, através do posicionamento de seu olhar, seus personagens “reais” em ficcionais. Impressiona a maneira como eles se colocam diante das câmeras, com total naturalidade, não há vacilos. Em certos momentos, temos a sensação de estar num filme roteirizado, em que as falas (nos poucos momentos que elas acontecem) foram ensaiadas, tamanha a naturalidade dos três andarilhos. Ele não mata a existência do acaso. Um mundo de tão real se faz ficcional. – Por Francesca Azzi

Curadoria e pesquisa: Ana Luiza Gomes