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É tanto que precisamos saber sobre o Acre! Pensando nisso O Brasil Com S falou com pessoas de perfis diferentes para responder à nossa questão de sempre: O que não sabemos sobre o Acre? Os olhares apresentados para esse tema são complementares e nos ajudam a formar uma percepção mais aguçada sobre esse estado que, sim, existe!

Começamos com o belo texto do Marcos Vinicius Neves, sobre um – e vários – fevereiros no Acre.

Fevereiro

As tardes desse fevereiro têm sido especialmente chuvosas aqui no Acre. Aliás, como quase sempre. Mas, esse ano tá chovendo muito também lá nas cabeceiras dos rios, pras bandas de Assis Brasil, Brasiléia, Xapuri e pr’além da fronteira, no Peru e Bolívia. Alagação na certa em Rio Branco. Essa cidade meio anfíbia que, desde o tempo em que ainda era seringal, teima em transformar ruas em rio, casas em ilhas e o próprio rio Acre em lago.

Apesar de todos os contratempos das caudalosas chuvas do inverno amazônico – que enchem as praças com poças incontornáveis e faz transbordar os cruzamentos das ruas, atrapalhando os que têm que ir pro trabalho, como eu, depois da sesta do almoço – não tem como não gostar de ver a folia dos meninos e meninas que correm pelas ruas tomando banho de chuva na biqueira das casas. Pense numa coisa boa!!!

Dá vontade de saltar do carro, faltar ao trabalho e me juntar ao bando de rapazes que segue pela rua com câmaras de pneus para saltar da ponte das Placas no velho e sofrido igarapé São Francisco – agora novamente jovem, forte e pleno de águas que correm rápidas entre seus apertados barrancos – e descer de bubuia no rumo da ponte do São Francisco. Tudo pelo melhor e mais nobre dos motivos: se exibir, em meio à tumultuada e perigosa correnteza, pras meninas bonitas que esperam ansiosas os aventureiros do rio cheio.

É bom ser menino e crescer no Acre. Tão bom como creme de cupuaçu.

*   *   *

Não… Não dá mesmo pra achar ruim tanta chuva. Não fosse ela não haveria floresta e sem floresta o que seriamos mesmo? Mais um lugar cinzento e triste, como tantos outros desse mundo vasto e cada vez mais complicado, provavelmente.

Aliás, justiça seja feita. Sem essa santa chuva não existiria Amazônia. Mas, sem esquecer, tampouco, que se não fosse a floresta não haveria chuva. Ciclo circular e inesgotável de vida: floresta que gera chuva que alimenta a floresta.

*   *   *

Se não me engano, foi também em fevereiro, ou quase, que passamos o dia todo voando de avião bimotor de um lado pro outro do Acre. De Rio Branco pra Santa Rosa, dai pra Feijó, de Feijó até o Jordão, do Jordão pra Marechal Thaumaturgo, até aterrissar em Cruzeiro do Sul e, enfim, poder descansar.

Foi lindo ver naquele longo dia, pela manhã bem cedo, o hálito noturno da floresta em forma de névoa alcançar a copa das arvores e se transformar em pequenas e esparsas nuvenzinhas. Nem bem a manhã ia pelo meio já eram milhares de pequenos flocos de nuvens subindo por entre as árvores. Depois de nossa segunda escala, as pequeninas nuvens já pairavam como nuvens bem maiores que nós, algo acima do infinito mar verde-vegetal que se estendia até muito além de onde nossa vista seria capaz de alcançar.

Logo, o calor do sol, pra lá de quente, do dia a pino, já cuidava de agrupar todas aquelas nuvens paridas pela respiração da floresta bem mais alto do que nós seriamos capazes de voar. Até que, do fim da tarde pra boca da noite, imensas montanhas de nuvens já vertiam densas muralhas d’agua aqui e acolá, rabiscando o céu com três, às vezes quatro, arco-íris, nos fazendo ziguezaguear como se estivéssemos a percorrer os tortuosos rios e varadouros da floresta que ainda estava sob nossos pés alados de então.

Curioso descobrir com os próprios olhos aquilo que só se supõe saber. Que aqui, na Amazônia acreana, não dá pra caminhar, navegar ou mesmo voar em linha reta, pois os rios, os varadouros do interior da floresta e até mesmo os caminhos do céu são por demais sinuosos para permiti-lo. Assim como toda e qualquer tentativa de explicar o que é a vida por estas bandas usando as velhas noções ocidentais que distinguem o que é sólido, vegetal, liquido, animal, gasoso, ou mesmo humano, está fadada ao mais retumbante fracasso.

Aqui uma coisa surge da outra, que por sua vez dá origem a outra, que leva a outra, que nasce de outra, até voltar pra coisa que veio em primeiro, sem que se saiba ao certo mesmo onde é que tudo principia ou finda.

Porque, na verdade, é tudo muito mais simples que isso. Basta compreender que viver aqui no Acre ainda é tão extraordinário e saboroso quanto chuva, infância ou creme de cupuaçu…

Marcos Vinicius Neves nasceu no Rio de Janeiro, mas há vinte anos mora no Acre, tornando-se um Acreoca da gema e do pé rachado. É historiador e arqueólogo por formação. Mas no Acre – além de atuar na área de Patrimônio Cultural no governo do Acre, ter dado aula em varias universidades e ter sido secretario de cultura de Rio Branco, capital do estado – mantém colunas semanais em diferentes meios de comunicação, publicou diversos livros e revistas e realizou exposições, vídeo-documentários e programas de rádio, sempre sobre história e cultura acreana.

(Por Mayra Fonseca. Esse texto é ilustrado por obra de Pedro Martinelli)