Uma das grandes vontades do O Brasil com S é conhecer os lugares do país a partir da percepção de quem é ou está há algum tempo nesse lugar. Achamos que olhares cotidianos são sensíveis e enriquecedores.

Vamos começar por uma cidade que é praça de pesquisa e de arte. Um lugar por onde Ana e eu já estivemos e voltamos cheias de dúvidas.

Daí decidimos perguntar a uma pessoa que admiramos muito, o escritor, roteirista e editor @Pedro Fonseca:

1b

O que não sabemos sobre o Recife?

Em primeiro lugar, que o artigo antes da cidade é duvidoso, discussão que perdura entre filólogos, sociólogos e bebuns dos bares da região central. Então, por enquanto, vou optar pela segunda forma (sem o artigo).

O que não sabemos sobre Recife?

Comecei muito cedo a fazer pequenos esforços para sair da minha cidade natal, mas meu êxito aconteceu apenas depois de casar com uma mulher mais corajosa e destemida que eu. Viemos para São Paulo e, desde então, tenho notado que meu olhar vai ficando turvo, nublado, um pouco mais míope, a cada ano. Vou pouco em Recife. Uma vez por ano. E procuro ser rápido: pouso, visito amigos do peito, fujo para uma praia – geralmente no litoral vizinho de Alagoas, que para o meu gosto, é mais bonito que o pernambucano. Nesse meu distanciamento focal, criei um filtro de informação, um sistema próprio de processamento de dados, uma distância regulamentar menos passional em relação à cidade.

Explico.

Sair de Recife foi escapar de algo que incomodou durante anos: a maneira do recifense enxergar a própria cidade. Com propriedade e desenvoltura (faça o teste), boa parte dos meus conterrâneos discorre sobre o fato da cidade “ser a maior aglomeração urbana do Norte-Nordeste”, “possuir o maior shopping do Brasil – excetuando-se os de São Paulo”, “ter o maior parque tecnológico do país”, “ser a cidade que detém o maior consumo de uísque per capita do mundo”, “ter o melhor aeroporto do Brasil”, “ser o segundo maior pólo hospitalar do Brasil”. Isso sem contar o que já virou piada. “É do encontro dos rios Capibaribe e Beberibe que nasce o Oceano Atlântico”. “Foram os judeus recifenses que fundaram Nova Iorque – é por isso que lá é desenvolvido”. “É a Veneza Brasileira”.

Minha percepção sempre fora mais simples: vivi em uma cidade complexa, com grandes complexos. Ponto.

Passei em Recife na semana passada para um rápido trabalho mas, no intervalo, ao fim de tarde, voltando da praia de Boa Viagem, adentrando a região portuária, vi a placa indicativa dos passeios de catamarã pelo Rio Capibaribe. Em 32 anos que vivi na cidade, nunca havia feito isso. Dei meia-volta. Moça, ainda tem passeio hoje?, Tem, Que horas sai?, Em dez minutos, Eu vou. Fui.

Não arrependo-me de ter ido apenas agora. Pelo contrário. Se eu tivesse ido mais jovem, não entenderia o recado deixado por escrito para mim, ali, naquele bilhete de acesso ao catamarã. Sentei na embarcação, perto das 17 horas, respirei fundo, vi que havia coletes salva-vidas e fiquei em paz. Partimos.

Da maravilha de descobrir-se ilhado.

O passeio de barco sai do Cais das Cinco Pontas (referência ao Forte homônimo, próximo dali). Parte pelo Rio Capibaribe com uma missão: cruzar, por baixo, as pontes que ligam ilha a terra firme. Uma senhora vai contando histórias no trajeto. Minha capacidade de audição seletiva me fez ouvir apenas o barulho do motor do barco e a água batendo na lateral. Pensava alto, muito alto. Era a primeira vez que sentia-me ilhado em minha própria terra. Ouvia com os olhos.

Se nas suas vísceras, nos bairros, Recife se revela uma cidade mal-cuidada, sofrida, pobre, sem planejamento urbanístico e social, carente, violenta, injusta, enfeiada com a chegada de arranha-céus horrendos por quase toda parte, do meu ponto de vista momentâneo, vista das suas artérias, das águas do Rio, outra coisa ela era, ali. Ilhado, pude perceber a cidade em mim de uma forma absolutamente nova. Estava cercado por algo novo. Eu era a minha própria ilha desconhecida de Saramago. Era Galeano caminhando em Montevidéu enquanto caminhava por dentro de mim mesmo. Era um anatomista usando o bisturi afiado para conhecer um novo corpo, como Andahazi sugeriu.

Eu vi, pela primeira vez, Recife.

Eu sou apenas um guia-mirim.

Saí do catamarã em êxtase, mas logo voltarei ao assunto – permitam-me um desvio de rota.

Você já comeu bolo de rolo? Coma. É bom. Só tem em Recife, peça a quem for à cidade, compre dúzias se você mesmo for, nunca esqueça disso: o bolo de rolo é a representação máxima dos sabores recifenses, um representante legítimo e covardemente sedutor no momento da sobremesa. Este sempre foi o meu texto para os amigos que partiram para minha cidade natal durante estes anos. O bolo de rolo era a minha única dica confiável. Sempre fui um guia-mirim no assunto Recife e só com esta viagem recente deparei-me com minha própria incompetência turística. Falemos de guias de verdade. Na mesma viagem, encontrei alguns amigos bons. E eles, sim, me deram dicas preciosas de coisas que não sabia sobre Recife – e que, com este convite especialíssimo para escrever aqui – é bom que divida com vocês que lerão esta wikioxente que escrevo.

Me apresentaram a um novo material da Banda Rua. Ouça, baixe, descubra. Sorria.

Assim como me falaram no Zé Manoel, pianista. Ouça, baixe, descubra. Chore.
http://br.myspace.com/zemanoel

Num jantar, vi na parede da casa de amigos novos trabalhos de Manoel Quitério.
http://manoelquiterio.com/

Visitei o ateliê de duas meninas (são meninas mesmo) que trabalham com elementos muito relacionados a uma estética tradicional, predominante no artesanato feminino da cidade, que elas modernizaram e ficou lindo demais.
http://trocandoemmiudos.com/#/home

Já falei disso, mas é bom falar mais de uma vez, porque esse assunto é sério e deixa a cidade cada dia mais feia. Uma epidemia que precisa de vacina, cura. Prédios de trinta, quarenta andares, com projetos arquitetônicos de gosto duvidoso, em locais que a maioria da população parece repudiar. No meio deste velho pesadelo, um movimento novo, recente, me pegou de surpresa enquanto estava na cidade. Para a decoração durante o carnaval, convidaram a designer Isabela Andrade Lima. Os homenageados serão o músico Naná Vasconcelos e o fotógrafo Alcir Lacerda (falecido recentemente). Aguardem. Será o carnaval mais bonito de todos os anos. A cidade estará linda – mesmo com os tais prédios. http://www.belandradelima.com.br/

Por fim, no meu último momento na cidade, ganhei um presente. Ouvi em primeira mão algumas músicas da Ahorta, que irá lançar o álbum em breve – e que não está, por enquanto, disponível na rede mundial, essa de computadores. Mas fica como registro para você que costuma anotar coisas indispensáveis. Anote. Depois ouça, baixe, descubra, dance.

De volta ao catamarã.

Ao final, antes de descer do barco, mulheres e crianças foram antes de mim, dei-me conta da maravilha que é ter orgulho de algo muito certo que fazemos para as nossas vidas. Estou há muito tempo morando fora de Recife. Ter entrado naquele barco, visto a cidade através do Rio Capibaribe, foi a melhor coisa que eu poderia ter feito para pensar na cidade por um ângulo completamente novo – e muito mais feliz. Ver Recife assim tornou possível que, finalmente, eu pudesse terminar o texto.

Para terminar o texto.

Proponho que voltemos a utilizar o artigo definido antes do nome da cidade.

A Recife.

Você conhece a Recife? Você já esteve na Recife? Que tal passarmos o carnaval na Recife? Já ouviu essa banda, esse pianista, esse som lá da Recife? E esse pintor da Recife? E essa artista plástica, conhece? – é da Recife.

A Recife, sim. O Recife, não, Freyre.

A Recife é uma cidade fêmea. Mas fique atento. É uma mulher que está despindo-se, sozinha, no quarto. Se notar que está sendo observada, irá esnobá-lo. Arrogante que é, tratará de destilar que é superior, pioneira, grandiosa. Isso é só escudo. E isso tira muito da sua real – e simples – beleza. Para conhecer a Recife, olhe pela fechadura. Não deixe que ela perceba que está sendo contemplada. Vá pelo rio.

(Introdução da Mayra Fonseca. Texto do Pedro Fonseca).